quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Ar.



Fazia tempo que eu não passava por isso. Medo: não existia um significado melhor. Estagnação, resistência. Tudo acabava compondo um contexto.
Eu nunca tenho facilidade para pegar as coisas de primeira. No primeiro ato, eu sempre sou desengoçado, erro os nomes, troco os conceitos, não passo do meio de campo, tropeço até cair no chão. A perfeição para mim é fiel ao ditado: só se concretiza depois da prática.
Eu não me sentia assim fazia anos. Acho que pela primeira vez, eu soltei todas as amarras que me prendiam. Assuntos acorrentados do passado, que ressurgiam como ondas pesadas prontas para um belo caixote. Era outra dificuldade, largar o ficou para trás, aceitar a mudança, por mais desabituada e medonha que ela possa ser.
Entre o verde que me engolia pelos pedalos da bicicleta, eu me entreguei ao vento. E conforme a dança que as folhas realizavam em meu avanço, eu ganhava experiências com o meu deslocamento. O guidon desenfreado que antes tremia entre a sutilidade das minhas mãos, agora desistia levemente de balançar. Tive sorte pelo caminho não ser árduo, pelo menos não no começo. Prevendo um tombo racional, eu sempre prudente em meus contornos, percebi que essa era a hora para ser firme. Seria um péssimo momento se eu coordenasse meus caminhos sem garra alguma.
O show era meu. E como é maravilhoso: ser eu. Sem críticas, sem olhares. Pedantes, ou ousados. Sem reputação, auto-imagem, ou qualquer torre imposta para esconder meu interior.

Eu ergui a coluna, alcançando o céu. Respirei três vezes, tentando sugar todo o ar que flutuava sobre mim. A leveza pela qual meus pulmões vibraram bem cheios, me incentivou a acelerar ainda mais.
Eu hesistei, por um segundo.
Só na mente, quero dizer. O impulso nervoso, de alguma forma eufórica, me traiu. Um bloqueio desconhecido o impediu de chegar aos meus joelhos. Batidos de tão aquecidos e vorazes, eles rodavam o pedal, aumentando aos poucos a minha velocidade. A sensação de perigo subia pela minha coluna vertebral, eriçando cada pêlo, tremendo cada ligamento, provocando a adrenalina. Eu suspirei, tenso, com a minha situação.

A estrada era longa, banhada pelas arvores "fortíferas". Alongando, passo a passo, o corredor ia terminando. Aonde eu iria parar? Em um breve segundo, eu senti em meus capilares avermelhados que aquela seria a minha roleta russa. Quanto mais o rastro sumia, engolido pela natureza, mais eu projetava a minha coluna, levantando do banco, me livrando da minha escuridão.

Que raiz calculada me prendia ao chão? Um frio no estômago congelava meu fúnebro desejo. Seria a hora perfeita para ser racional. Ultrapassar a física, reduzir meus limites a zero, com certeza provocaria árduas consequências. Por mais que lei universal da causa e efeito (o que você colhe, você planta) estivesse passando diante dos meus olhos, eu optei por outra função.

Eu escolhi a derivada.

Um calor insano transformou abruptamente qualquer medo em pura exaltação. Eu urrei aflito, sentindo um vigor preencher minha insana escolha. O tempo que fora retardado em minha mente, voltava bem rápido à idéia real. Eu levantei o pescoço, engolindo seco, libertando minha alma, e seguindo minha tão sonhada liberdade.
Eu presenciei a ladeira, voando aos céus, enfrentando todo o ar em meus cabelos, tão uivantes no começo da subida, tão brisantes na descida do plantar. Durante a altura, eu esqueci da gravidade, eu fui pela inôcencia, pelo meu louco interior, buscando minha eterna aventura.
Eu me sentia vivo, em minha paz tão completa, esperada por mim e alcaçanda dessa forma tão simples e tão valiosa.
Quando eu toquei aos chãos, eu persisti no meu sonho. E quase subindo no tronco do além, entreguei erguido minhas mãos ao anil dos céus. E fechei meus olhos.
Fui para outro plano, outro astral.

Em uma parada perfeita na realidade, eu retornei confiante e orgulhoso de meu trajeto esvoaçante. Tão concentrado em meu rumo, nem percebi Oliver que se encontrava sentado na leitura de um livro, embaixo de uma arvore.
Para variar, minha mente foi projetada para realizar meus movimentos atraídos até ele. Eu freei, em uma pose sensual, jogando os pneus para a parte anterior do seu corpo. E apoiando minha perna, para sustentar a bicicleta no solo, sem descer.

Ele apenas sorriu, daquele jeito penetrante, dizendo.

—Foi o espetáculo mais bonito que eu já vi em toda a minha vida.

Meu sorriso quase deslocou minha mandíbula.
Esse era o meu original.
Tão étereo e leviano.

Como o vento.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Reação.

Sucesso.

Como se vida fosse uma roda implacável. Jamais poderemos parar seu giro. Teremos que aceitar com plenitude, todas as suas fases. Demoraremos anos para conquistar qualquer tipo de apogeu. Chegaremos ao topo, satisfeitos por nossos atos, seguros por nossa vitória e esforço tão bem aplicados. E então quando nós menos esperarmos, seremos revirados pelo avesso. O caos surgirá deliberado, reduzindo qualquer segurança a pó.

Fracasso.

Foi como se imagem a minha frente tivesse começado a se retorcer. Tudo o que antes estava claro, passou turvo bem diante dos meus olhos. Para todos os desesperados, foi como uma bomba, um terrorismo, uma explosão. Para mim, foi tão lento quanto contagiante. Como uma pequena gota de veneno em frenesi, à vista tão mínima, mas que uma vez disparada pela corrente sanguínea, não haverá nada mais mortal.
Houve uma agitação frenética naquela área hospitalar. O primeiro acontecimento veio de Taylor, é claro. Por dentro, uma faísca foi acesa, desencadeando um processo de combustão. Sua energia passou de uma plena calmaria a um trágico relâmpago, que fazia arder agora em fogo, todos os seus mais de seiscentos músculos.
Eu senti, irrevogavelmente a sua dor. Foi tão forte que meus joelhos tombaram. Eu arfei fortemente, após colocar a mão no peito tentando me livrar daquilo. Não era a toa que ele mal conseguia controlar o que pouco a pouco se espalhava. Afinal de contas, o que era aquilo?

Ele empurrou Julia, impulsivamente, com o mesmo braço que antes a segurava, deslocando-a em direção a parede. Ela bateu com as costas na margem dura, deslizando, sem reação até o chão. Taylor empurrou a maca, impedindo os seguranças de chegarem até ele. Logicamente, todos da sala já tinham percebido seu comportamento exacerbado. Bem de lance, eu percebi um médico que tremia aflito no preparo de uma seringa. A minha suposição é de aquela dose serviria para acalmar o rapaz.

Mas que falsa esperança.

Assim que o médico deu um passo para frente, foi acertado bem no peito com um punho fechado. Não é de se duvidar que tenha caído inconsciente no chão. Mas nessa hora, eu fechei os olhos e não consegui ver mais nada.
A tristeza de Taylor se espalhava dentro de mim. Ela crescia, amontoando-se com cada fragmento que aos poucos se fundia, tornando-se maior do que eu esperava. Na verdade, Taylor não existia mais. Foi como se toda a sua consciência tivesse sido sugada e posteriomente aprisionada em um cárcere composto por um material indestrutível. Aquele monstro não era ele. O seu Ki não me era tão familiar, comprovando o novo ser que agora regia seu corpo. Eu percebi mais pessoas entrando na sala. Algumas ao passar pela porta, pela velocidade, esbarram em mim. Por quê? Por que esse Ki tão faminto por raiva se espalhava mediante as suas células tão inocentes? Por que esse gosto incontrolável de machucar viciava suas veias, tão precisamente? Eu consegui abrir os olhos. O peso sobre mim era terrível, tanto que eu ainda estava abaixado, quase beijando o chão.

Mais seguranças chegaram. Eles tentavam ganhar o controle da situação. Com certeza, aquela não era a primeira vez. O artigo de Taylor persistia em relembrar os acontecimentos.
“Seu nome é Taylor. Um rapaz de dezesseis anos, que diz perder o controle da própria mente, chegando a machucar qualquer pessoa próxima ali existente.” Cada letra se transformava em uma atitude. E na prática é sempre mais difícil.

As pessoas que estavam ali zelando pela proteção de Taylor tinham métodos experientes. Mas não suficientes. As pistolas foram disparadas. Elas continham algum projétil paralisante. Foi nesse momento que eu percebi a velocidade descomunal de Taylor. Em uma gesto totalmente elaborado, ele se defendeu em pleno ar, desviando cada cartucho de substância ali contida. Ele recebeu um profundo choque, proveniente de algum dispositivo instalado, que fora mantido em sua cabeça. O menino até chegou a balançar para trás, mas persistiu em continuar intacto. Só que agora um pouco mais irado do que antes.

Julinha que tinha se recuperado, se aproximou rapidamente do rapaz. Mas que péssima idéia. Era notável que ele não conseguia mais discernir as pessoas. Antes que ela pudesse sequer tocá-lo, foi nocauteada ao chão, batendo o tórax e perdendo parte da respiração. Ela era forte, pois não desmaiou.

Ao sentir o sofrimento de Julia, eu de certa forma acordei. Depois de alguns segundos — que mais pareciam anos — eu consegui me estender de pé, me acostumando com aquela inacabável sensação. Eu tentava captar o máximo de oxigenação do ar, tentando forçar minha movimentação até ele. Um átomo de esperança ainda existia nos homens que achavam que poderiam parar a criatura que cada vez mais urrava por sangue. Os poucos que chegaram a encostar nele imobilizando-o, acabaram com seus ossos fraturados. Os outros que se aproximavam tinham medo de prosseguir.
O vapor aos poucos evaporava. O clima tenso se espalhava pelo lugar.

Medo.

Ele gritou assim que me viu. Eu gostaria de ter entendido o que ele estava tentando me dizer. Mas mal conseguia vê-lo, pois a força que eu fazia estava toda concentrada pra suportar o que ele me transmitia. Com as nossas energias conectadas, eu continuava a me arrastar pelo cômodo. Eu não podia falhar, não queria desistir.
Já por outro lado, eu conseguia ouvir o que todos me gritavam. As expressões das pessoas ali presentes me assustava. Não consegui focalizar nenhuma direito, mas eu sentia que no fundo dos poços emotivos, que todos temiam bravamente a minha aproximação.

Definitivamente, eu não tinha medo de morrer. Também não sabia se a distância entre nós dois seria suficiente para que ele pudesse me ouvir. O pior de tudo é que eu temia não conseguir falar. Estendi minha mão em direção ao seu peito nu desprendido, mas ele se afastou de mim, como um animal acuado.
Ele me olhou em tom voraz e eu localizei em uma fresta da sua retina o seu medo devastador. O único ali que não parecia ter medo era eu.
Como eu podia me arriscar tanto assim? Como eu podia confiar tanto nele? Tão cedo, assim? Para qualquer ser racional que me visse ali naquele instante, comprovaria com total certeza de que eu estava agindo como um louco. Mas eu não ligava. Eu só seguia o que me levava. O natural que surgia, a confiança que crescia e que me confortava a pleno ouvido. Foi uma das poucas vezes que percebi que o tempo não limita o coração.
Bem ali, naquela confusão, naquele flash de luzes amontoados, acomodados com sentimentos lançados tão fugazes, sem serem medidos.
—Está tudo bem. Eu posso sentir... — Como eu consegui falar?
Uma lágrima caiu, borrando o tom moreno das bochechas de Taylor. Eu paralisei diante da cena, entrando em vácuo profundo assim que meus pés perderam o contato com o chão. Tudo ficou escuro para mim.
O soco atingiu em pleno o meu estômago. Ele me levantou por um mínimo momento do chão, mas logo recuperei superfície suficiente para permanecer em pé. No momento, só aquilo que importava. Só ele existia ali, diante de tudo. Nada físico podia me derrubar.

Ele chorava por mim, ansiava pela minha chegada. Eu conseguia sentir. Mais do que o soco, eu sentia na pele o quanto Taylor sofreu ao me acertar. O quanto ele jamais se perdoaria por isso. Ele chegou a desejar até a morte de tão arrependido. Ele preferia morrer a deixar aquilo controlar sua mente.

A roda girou novamente. O fato dele ter me machucado ativou o estopim para que o sol surgisse perante as sombras que obstruíam as suas emoções. O muro que envolvia o espírito de Taylor, toda a sua essência, começava a desmoronar. Antes oprimido, agora eu enxergava uma luz. Como se ele estivesse ali, tão atingível quanto desabilitado, sem forças para se levantar. Eu segurei o seu punho contra a minha barriga, ou melhor. Eu segurei a sua mão.
O ar que me faltava chegou novamente em meus pulmões de uma forma lenta, me aliviando. Por alguma sorte, eu não desmaiei. Com muito cuidado, afastei a mão fechada do menino, que tremia e lutava contra a sua furiosa entidade para não me acertar novamente.
—Taylor. Eu sei, eu sei. Eu sei o que você sente. Eu sei que você está aí.

Ele levantou a mão acima da minha cabeça. Nessa hora, seu tronco parecia muito estufado, como se ele fosse um lobo selvagem, louco para capturar a sua presa. Julinha soltou um grito agudo. O próximo golpe seria o último. Esse seria meu fim. Eu não me deixaria cair. Agora que Taylor estava do meu lado. Como eu poderia permitir isso?

Meu corpo se lançou. Nessa hora eu dancei em um tom rítmico, fui espontâneo e livre, como o vento. Alcancei seu pescoço, soltando a respiração, tão contente por senti-lo em mim. Fechei meus braços em um movimento repentino, depositando ali meu ultimo desejo tão fervoroso, minha ultima salvação. Meu carinhoso suspiro de calor.
O seu ato que por um instante, fora malévolo foi se minimizando. Não havia mais nada de perigoso a ser sentido, nenhum alerta a se temer. Suas mãos apertavam desesperadamente as minhas costas, forçando aquela situação a diminuir, a se quebrar.

Até sumir.

Ele expirou, inspirou, como se todo o ar presente na atmosfera não fosse o suficiente e apenas não tombando ao chão, porque eu estava ali. E porque ele desejava isso mais do que tudo.
—Eu vol-voltei. Você me fez... — ele suspirou em meus ouvidos.
—Você se fez voltar. — eu tentei corrigi-lo.
—Não... Não... Eu nunca voltei antes, até... — ele não pronunciou a palavra. —Foi você, Bruno.
—Descanse.
—Eu não existo mais. Não sem você.
—Vai ficar tudo bem, a partir de agora.
Ele chorou em meu ombro, quase morrendo em felicidade sinestesial.
—Eu tava com tanto medo. Eu não... Eu não...
—Eu sei, eu sei. — e eu sabia mesmo.
—Não me solta. Não-não vai...
—Não vou embora. Jamais deixaria você.

Ele não falou mais nada. Diante de todos, ele permaneceu ali parado, colado a mim, com medo de deixar. Com ânsia para me largar. Nós nunca mais iríamos nos separar. Estávamos com as almas entrelaçadas.

Nosso amor finalmente estava comprovado.